Ainda Estamos Aqui
- Rebel Girl
- 3 de mar.
- 5 min de leitura
Atualizado: 11 de mar.
Qual a história da sua família e a ditadura militar?

Uma história sobre o período da ditadura militar, de uma família de classe média do Rio de Janeiro, que morava no Leblon, atravessou um monte de brasileiro que, até aquele momento, não tinha parado direito pra pensar naquele momento histórico.
E por quê?
A começar pela escola, o único momento em que eu ouvi falar e discuti superficialmente, sobre esse assunto. Claro que a escola não nos traz a refletir sobre esse momento histórico, tão (não) sutilmente varrido para debaixo do nosso grande tapete nacional. Se pensarmos a escola como manutenção do status quo, não existe interesse em revisitar a ditadura, pois olhando com olhos bem abertos, sujeitos, corporações e instituições que se beneficiaram enormemente dos anos de restrição militar impostos ainda estão aí, fazendo a mesma coisa que faziam há 50 anos atrás, e se estamos sendo bem sinceros, de forma mais escancarada e descarada. Afinal, você ouviu alguma explicação sobre o porquê daquelas inúmeras próteses penianas ou dos quilos de Viagra que foram comprados pelos militares durante a pandemia? Eu não...
Mas não é sobre isso que eu quero falar aqui, sobre esse desbunde militar que vivemos, e sim, por que, por que eu nunca falei realmente sobre um período que marcou a vida de tantos brasileiros? Por quê eu cheguei até a relativizar esse momento em minha cabeça? (Estou ouvindo a voz do meu pai em eco dentro do meu cérebro “aqui não houve ditadura militar, houve um XXXXXX”. )
A história da família Paiva é a história de todo brasileiro vivo durante a ditadura. E assim como brilhantemente pontuado pelo Chavoso da USP, a truculência com que a distinta família Paiva foi tratada naquela época, e a mesma dignada a todo e qualquer morador pobre e favelado do Brasil, hoje, de uma maneira tão naturalizada pela mídia, por exemplo, quanto a ditadura foi dentro da minha própria casa.
Meu marido foi a minha única fonte direta de histórias que aconteceram com aqueles que ele conheceu/ conhece que eram pobres ou que não concordavam com o regime, ou os dois.
"(...) você ouviu alguma explicação sobre o porquê daquelas inúmeras próteses penianas ou dos quilos de Viagra que foram comprados pelos militares durante a pandemia? Eu não..."
Seu avô, supervisor de setor em uma gráfica, sofria ataques da PM dia sim dia não na entrada do serviço. As gráficas eram ponto visado dos milicos, que buscavam qualquer tipo de material impresso contra o regime. A humilhação geral dos funcionários, essa era feita porque eles podiam. Inúmeras vezes ele ficou sem almoço, porque um dos passatempos preferidos dos (des)queridos era jogar a marmita dos trabalhadores no chão. Ele era formado apenas até a 4ª série.
A mãe do meu marido, a filha do homem anterior, entrou em contato com a ditadura diretamente na faculdade quando um de seus professores desapareceu do dia pra noite. O professor em questão usava códigos para indicar textos tidos como subversivos pelo regime. Em outro momento, um de seus colegas de sala, cabeludo com pinta de metaleiro, em uma noite de bar, completamente bêbado, anunciou para todos da turma que estavam ao seu redor que ele era P2, informante do DOI-CODI. Não se sabe se ele foi o responsável pelo desaparecimento do professor.
Já a Dalva, amiga de família, uma professora de ensino fundamental I e totalmente apaixonada pelo JK, filha de cafeeiro do Espírito Santo, típica dondoca do interior, que tem a polícia e as instituições como amigos, resolveu em pleno AI-5 fazer um evento na semana física em homenagem ao falecido presidente. Ela foi chamada para prestar depoimento no DOI-CODI de Vitória, e ela só não sumiu porque um de seus alunos de supletivo, cadete do exército, a fez cancelar a homenagem e a ajudou a treinar as respostas que eram esperadas para que ela fosse solta. Ela nunca mais falou sobre presidentes do Brasil fora da aula de geografia depois daquilo.
Já o pai do meu marido foi Policial do Exército no AI-5. Não foi discorrer sobre as coisas horríveis que foi obrigado a fazer em seu 1 ano de serviço, mas posso afirmar com documentos que ele foi preso em mais de uma ocasião por se negar a tratar presos políticos como animais, e foi obrigado a limpar latrinas com a própria escova de dente pelo menos 2 vezes por se recusar a participar de invasões, prática comum em Rezende na época que ele serviu.
"(...) o pai do meu marido foi Policial do Exército no AI-5. Não foi discorrer sobre as coisas horríveis que foi obrigado a fazer em seu 1 ano de serviço, mas posso afirmar com documentos que ele foi preso em mais de uma ocasião por se negar a tratar presos políticos como animais"
Em uma sentada com a pergunta “como foi a ditadura pra sua família?” meu marido contou 4 histórias, todas demarcadas pela brutalidade direta ou indireta desse período. Sabe quantas histórias dessas eu tenho? Zero.
É óbvio que minha família passou por isso, e deve saber de algo. E eu não quero acreditar que o motivo pelo qual essa realidade de décadas foi simplesmente apagada das memórias da minha família por qualquer outra coisa que não um desconforto em falar de coisas difíceis, o que lhes é peculiar, e não por qualquer tipo de negacionismo histórico.
Mas o fato é que essa realidade, esse desconforto, é real para milhões de brasileiros. Não falar sobre os horrores que aconteceram dá força àqueles que os perpetuaram. Aquele babaca que fala como se tivesse uma batata lá enfiada na goela, aquele, único que já perdeu reeleição de presidência no Brasil não lambe as bolas de torturador até hoje? Não foi ele inclusive que cuspiu no busto do mesmo Rubens Paiva, pivô da história que hoje dá um certo tapa na cara de quem não gosta de lembrar da ditadura no Brasil?
A questão é que aquilo que não se fala, não se repete incansavelmente, tende a se repetir. Não vou entrar no mérito dos porquês socioeconômicos de se repetirem, mas sim. Se repetem. As realidades relativas que vivemos hoje subvertem as verdades e trazem esse horror histórico pra um patamar mais palatável, o patamar de vergonha passada, não de perigo presente. O patamar de se cogitar anistiar (mais uma vez) golpista, que dada oportunidade tá aí até hoje tocando terror com favelado, calando a boca de milhares, e só esperando uma brechinha pra calar a minha boca e a sua também.
Te convido a fazer então este exercício: qual a história da sua família e a ditadura militar?
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