Pessoas Comuns
- Rebel Girl
- 20 de abr.
- 5 min de leitura
Como a realidade está afetando os fãs de Black Mirror

Li algumas críticas sobre a nova temporada de Black Mirror recentemente e assisti aos primeiros episódios, mas as duas frases que ficaram na minha cabeça foram: "Black Mirror não está trazendo novas críticas e reflexões" e "É apenas mais do mesmo".
Na direção contrária à O Conto da Aia, por exemplo, escrito em 1985 por Margaret Atwood como um aviso e que agora começa a se concretizar nos EUA, Black Mirror iniciou sua trajetória como uma distopia antológica ultratecnológica que parecia focar suas críticas à combinação de tecnologia e capitalismo, mas sem abrir um diálogo. O choque episódico parecia ser o bastante. No entanto, parece estar cada vez mais se aproximando da realidade atual, decepcionando alguns espectadores, já que o que estamos vendo nesta - assim como na última temporada - é a ideia distópica contida muito mais nos detalhes do que escancarada em nossa cara (algo que eu particularmente gosto muito).
Carros antigos por todos os lados, pessoas de classe média trabalhando em serviços braçais e, principalmente, no primeiro novo episódio de 2025, Pessoas Comuns, a ideia de streamização dos serviços básicos.
Isso é muito mais real do que as pessoas talvez quisessem assistir.
"(...) a empresa Rivermind aparece com um procedimento seguro e exclusivo: a consciência da esposa seria armazenada na nuvem, assim o procedimento físico de correção poderia ser feito sem riscos de perda de memória ou sequelas. A própria consultora comercial faz parte do pitch de vendas, afinal ela foi uma das primeiras usuárias do serviço. "
Este episódio nos apresenta um casal apaixonado que todo ano retorna ao local de sua lua de mel para comemorar seu aniversários de casamento. Após uma dessas escapadas, o casal se vê diante de uma tragédia: a mulher entra em coma por conta de uma doença cerebral degenerativa e é muito provável que ela nunca se recupere.
Aqui, a empresa Rivermind aparece com um procedimento seguro e exclusivo: a consciência da esposa seria armazenada na nuvem, assim o procedimento físico de correção poderia ser feito sem riscos de perda de memória ou sequelas. A própria consultora comercial faz parte do pitch de vendas, afinal ela foi uma das primeiras usuárias do serviço. Cereja do bolo: a cirurgia seria feita de forma gratuita - o que sabemos, nos Estados Unidos, pode significar falência generalizada de uma família. Claramente, o marido, seduzido pela potência da promessa de ter sua esposa de volta sem nenhum efeito colateral, aceita os termos.
A pegadinha? O download desse pacote de dados (sua esposa) é feito diariamente por meio de streaming. O pagamento para acessar a consciência de sua mulher é feito em formato de assinatura. Por 300 dólares mensais.
Um paralelo simples pode ser feito com a cultura atual de pagamentos por assinatura. Quando a mulher começa a cuspir propaganda targetada em seu ambiente de trabalho (uma escola de ensino fundamental!), a única coisa que me veio à cabeça é o plano grátis do Spotify, que te força a se tornar premium, já que em seu pior momento chega a uma taxa de 5 propagandas para cada música tocada.
"Ele decide participar do que eu particularmente chamei de OnlyFans da Destruição, um site onde criadores de conteúdo se humilham em troca de dinheiro em lives. Me lembrou muito o programa do Luciano Huck e me fez pensar se este tipo de "conteúdo" não existe de verdade em alguma esquina sombria da nossa internet."
Porém, acho um paralelo muito preguiçoso. O que mais na nossa realidade se assemelha ao que a mulher e seu marido estão passando?
Quando o casal percebe que, para pagar a assinatura mensal, precisará economizar - além de trabalhar horas extras estafantes -, tudo mais que fazia a vida desse casal valer a pena cessa. Todos os momentos sociais, os pequenos prazeres diários, como uma cervejinha após um turno de 12 horas de trabalho, viagens de férias e a tão sonhada escapadinha de aniversário de casamento não são mais uma possibilidade.
E esta não é a realidade do cidadão médio vivendo sob o capitalismo tardio, hoje? Pagar para sobreviver? Falando sobre a realidade brasileira, um casal de classe média com filhos soma escola particular, plano de saúde, contas básicas e alimentação. Sem receber um salário de 5 dígitos mensais, algo que no Brasil representa apenas 1% da população, é muito provável que essa família apenas tenha dinheiro para sobreviver. Nem entrarei no mérito da família não recebe nem um salário mínimo por mês, de tão crua que é esta realidade.
No episódio, a reviravolta vem quando a mulher vira uma máquina de vomitar propaganda. Buscando uma alternativa para a realidade massacrante (de trabalhar para existir), e forçado a pagar o plano premium para a esposa manter seu emprego - já que os ads haviam se tornado tão frequentes e invasivos que ela seria demitida se não fizesse o upgrade -, o marido busca o "side hustle", ou, em português, o bico.
Ele decide participar do que eu particularmente chamei de "OnlyFans da Destruição", um site onde criadores de conteúdo se humilham em troca de dinheiro em lives. Me lembrou muito o programa do Luciano Huck e me fez pensar se este tipo de "conteúdo" não existe de verdade em alguma esquina sombria da nossa internet.
Como se tudo isso não bastasse, a empresa finalmente mostra a que veio. Ela lança seu plano Premium Plus Advanced. Algo ultraexclusivo que não apenas permite que os usuários baixem suas consciências normalmente, mas também autoriza o uso do cérebro de usuários de planos mais básicos como processadores para aumentar as capacidades mentais e habilidades dos usuários mais abastados.
Hm... Pessoas muito ricas explorando de forma física e mental os que menos têm (correção gramatical), onde já vi isso mesmo...
"Algo semelhante começou a acontecer em países cujo altíssimo custo de vida ficou insustentável. Cidadãos da américa do norte recorrem à "autoeutanásia" por não poderem pagar para estarem vivos, (...) muitos morrem em frente aos hospitais que hoje recusam atendimento àqueles que não podem pagar pelos procedimentos com uma naturalidade orwelliana."
É claro que o casal não pode pagar pelo plano VIP. Quando o marido perde o emprego porque seus colegas de trabalho descobriram o que ele fazia na internet, eles são forçados a retornar ao plano básico. Agora ela passa mais de 16 horas dormindo, alimentando a cognição dos usuários do Rivermind Plus, e quando está acordada tem pouquíssimas horas de consciência, pois ela é praticamente um robô da propaganda. A mulher, à beira da loucura, não aguenta mais. Então, após usufruir de 30 minutos de serenidade proporcionados por um cartão de presente do plano Plus, o marido asfixia sua esposa, acabando com o sofrimento de ambos.
Algo semelhante começou a acontecer em países cujo altíssimo custo de vida ficou insustentável. Cidadãos da américa do norte recorrem à "autoeutanásia" por não poderem pagar para estarem vivos (veja as notícias ao final deste texto); muitos morrem em frente aos hospitais que hoje recusam atendimento àqueles que não podem pagar pelos procedimentos com uma naturalidade orwelliana.
É um episódio pesadíssimo, e eu entendo. Quando você vive esta realidade, quando você é o marido que trabalha 12 horas por dia, não quer chegar em casa, ligar sua série favorita e ver seu próprio dia esfregado de volta na sua cara. Mas este cansaço que acabamos sentindo e que nos afasta de temporadas como esta de Black Mirror, é proposital. Pessoas cansadas não lutam pela mudança de suas próprias realidades. Assim como também é proposital a "burrificação" dos conteúdos, e Black Mirror é uma das poucas séries mainstream atuais que ainda fazem críticas sociais relevantes. Ela saiu de seu lugar de high tech audaciosa, mas de forma alguma deixa de ser relevante.
Precisamos ser muito atentos à curadoria do conteúdo que assistimos. Claro que precisamos descansar nossas mentes, muitas vezes assistindo a filmes e séries que estão lá apenas para relaxarmos. No entanto, criticar algo simplesmente porque não estamos confortáveis é um erro. Especialmente quando está refletindo nossa realidade.
Porque nós somos as Pessoas Comuns.
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