Coco Mellors
- Rebel Girl
- 13 de abr.
- 6 min de leitura
Atualizado: 14 de abr.
e o Clube das Gostosas (que querem deixar de ser apenas) Tristes

Quando alguém que você ama se vai, acredito que nosso maior desejo é nos reencontrarmos com aquela pessoa. No entanto, acho que o problema é tentar fazer isso ativamente, porque a única forma de se reencontrar com uma pessoa morta (dizem), é morrendo também.
As Irmãs Blue (título do livro de Coco Mellors) sofrem um pouco disso. Eram quatro, sobraram três. A irmã mais nova que sofria cronicamente de endometriose e de suas dores lancinantes acaba se viciando em analgésicos, algo que nos Estados Unidos de hoje em dia é base para uma overdose (viva o Lisador livre de opiáceos).
A história se passa um ano depois do falecimento de Nicky e suas irmãs Bonnie, Lucky (sim, esse é o nome dela) e Avery estão, cada uma a sua maneira, em um caminho de autoflagelo árduo e doloroso, que mistura culpa, solidão e, principalmente, traumas familiares não resolvidos.
Quando terminei de ler, foi impossível não pensar na newsletter de Clarissa Wolf de março de 2024 (já tem um ano e continua marcada como não lida na minha caixa de entrada pra eu revisitar de vez em quando...) intitulada “O Clube das Gostosas Tristes”. E do que se trata esse clube, você mera mortal que não assina a newsletter Alcateia da gata (bora lá, que eu não indico nada que eu não leio ou não acho interessante) deve estar imaginando?
A melhor alegoria que eu posso fazer é pedir que você retorne a sua adolescência feminina, aquela fase dramática envolta em um turbilhão de acontecimentos e hormônios, e lembre daqueles dias de melancolia descabida, onde você ficava deitada na cama, com as pernas largadas, olhando pro teto e pensando no nada, bem a lá Virgens Suicidas (de Sofia Coppola, assiste lá também) filme esse, inclusive, que é pra mim a epítome da Gostosa Triste, mesmo que eu não tenha cunhado o termo nem agregado a ele as referências e agora esteja fazendo uso livre dele, como se fosse meu (Clarissa, me desculpe).
"Fazia muito tempo que eu não lia um livro que tocasse em uma coisa tão relacionável quanto o luto, e as formas que ele pode tomar pra cada um. Mas a relação que eu fiz com o CGT (Clube das Gostosas Tristes) é que essas mulheres já eram deprimidas antes da irmã morrer."
Basicamente, é uma romantização da tristeza, como Clarissa descreve em seu texto, uma tentativa de ressignificar a depressão pra que a gente possa viver na realidade. Como ela diz: “ideação suicida vira dor de artistas, poético, em cima de um pedestal. Crise maníaca vira maquiagem de fim de noite, after do after, e sexo problemático. Autodestruição vira a hashtag Fleabag era.”. Não é a depreciação e a desimportância da depressão, mas a humanização, afinal, quem está nomeando é quem está sofrendo.
E como essas irmãs estão sofrendo...
Fazia muito tempo que eu não lia um livro que tocasse em uma coisa tão relacionável quanto o luto, e as formas que ele pode tomar pra cada um. Mas a relação que eu fiz com o CGT (Clube das Gostosas Tristes) é que essas mulheres já eram deprimidas antes da irmã morrer. Não ironicamente, a própria irmã morta também. Com pai alcoolista e mãe um tanto narcisista e extremamente complacente, essas quatro irmãs cresceram tendo apenas elas mesmas como referência.
Avery, a mais velha, fugiu de casa ainda adolescente. Suas lembranças de infância, revividas ao longo da obra, tratam de como suas emoções eram diariamente obliteradas pelo pai em suas crises. Como ele destruía objetos queridos da família em uma noite, apenas para chorar no dia seguinte arrependido, porém sem ter nenhuma lembrança do que tinha feito. Ao fugir de casa, ela se liberta da responsabilidade atribuída a ela pela própria mãe de cuidar das irmãs mais novas, se vicia em heroína e vive sua primeira paixão. No entanto, algumas ideias incutidas em nós quando criança são difíceis da gente largar depois de adulta. Ela retorna pouco mais de um ano depois, se enfia sozinha em uma clínica de reabilitação e volta para o seio familiar para continuar sendo o norte metafórico de suas irmãs, sem que a própria mãe tenha tido que levantar um dedo. O condicionamento é mesmo lindo.
Bonnie é a segunda. Teve uma atenção privilegiada de seu pai que via nela o “menino que ele nunca teve”, por conta de sua aptidão para os esportes. Tendo assistido seu pai e irmã mais velhas refém das substâncias, ela opta por levar uma vida completamente sóbria, preferindo extravasar sua neurose em um ringue de boxe, com seu treinador russo Pavel, anos mais velho que ela, por quem ela nutre uma paixão platônica (daddy issues, corre aqui!). Ele, no entanto, se reparou na paixonite da pupila, ignora (graças a Deus, um homem não creepy nessa história). A carreira de Bonnie estava em ascensão quando ela encontra Nicky morta no apartamento que dividiam em Nova Iorque. Ela tem uma luta importante dias depois, mas ao sofrer uma trágica derrota ela (literalmente) foge pro outro lado do país, em uma tentativa de deixar a frustração e o luto pra trás.
Por fim, Lucky, agora a mais nova das irmãs, é modelo desde os 15 anos. Vive uma vida completamente conturbada, entre semanas de moda e festas regadas a abuso de substâncias. Além do trauma vivido em casa, ela também sofreu na mão de um fotógrafo quando ainda era adolescente, fato este que antes da morte da irmã era soterrado diariamente por uma vida social caótica, que permitia alienação. No entanto, o luto a faz perder o controle (que ela nunca realmente teve) da espiral que é sua vida. As noites vão ficando cada vez mais selvagens e cada vez menos memoráveis.
"A mulher como musa torturada das artes, que em algum nível nos acompanha como participantes do CGT, nunca é salva, a beleza de sua existência vive, inclusive, no fato de que ela irá sucumbir, pois sua morte é necessária para desencadear o processo criativo ilustre de um terceiro."
Cada irmã está colapsando a seu modo, há muito tempo. A morte da irmã mais nova é apenas o catalisador para que as dores que antes as três irmãs ignoravam, rompa o o interior das protagonistas, e passe a existir no mundo real. As neuroses acumuladas de cada uma param de ter um objetivo, afinal, qual sentido de continuar fingindo que você ama a vida, quando um pedaço de você morre? Ou pior, quando você nunca pensou se realmente amava a vida pra começo de conversa.
No entanto, percebi que ao longo da história existe uma questão de ressignificação da autoaniquilação, presente na ideia do CGT quando este desejo (de deixar de existir) não é levado a fruição por nenhuma outra irmã, apesar das tentativas. O que assistimos não é a desistência do existir, mas a luta interna entre as pulsões de morte e vida, sem nenhuma fetichização do sofrimento feminino.
A história é crua. Não temos aqui mulheres de vestido curto de verão florido, que passam os dias contemplando o horizonte, sonhando acordadas com o suicídio. O que temos é apenas tristeza acompanhada de cleptomania, de experiências sexuais vazias e semiconscientes, de solidão e traição. Não há um homem que possa salvá-las, inclusive, o que achei maravilhosamente incrível. Não há homens nessa história, apenas as lembranças da uma figura paterna falha e destroçada, e personagens masculinos secundários que não movem a narrativa (este livro com certeza passaria, se posto à prova, no teste Bechdel).
E como é um livro que não fetichiza a depressão, há redenção. Como Clarissa Wolf questiona em seu texto: “Existe algo inerentemente feio em buscar o acolhimento como único objetivo em um primeiro momento? Se a invalidação da tristeza sentida por mulheres é a regra, reconhecer algo de reconfortante não pode ser válido por si só? E não haveria algo de nobre em um esforço por desestigmatizar questões de saúde mental? Ou não passa de uma viagem masoquista de autopiedade?”
Eu entendo o questionamento. A mulher como musa torturada das artes, que em algum nível nos acompanha como participantes do CGT, nunca é salva, a beleza de sua existência vive, inclusive, no fato de que ela irá sucumbir, pois sua morte é necessária para desencadear o processo criativo ilustre de um terceiro. Mas eu, e acredito que muitas, não tenho mais paciência pra esse tipo de obra, eu não quero me ver morrendo nas páginas, enquanto um zé mané qualquer usurpa nossa existência e vive (diga-se de passagem, muito bem) contando sua versão romantizada sobre ela. É como o fotógrafo que captura rostos tristes para serem apreciados em um vernissage. A imagem pode ser bela, mas por trás de cada lágrima existe uma pessoa sofrendo, o que acaba transformando o trabalho em algo extremamente hipócrita.
A meu ver, as irmãs Blue não foram criadas para serem musas ou estereótipos do sofrimento feminino. Acredito que elas mostram uma nova forma de ser GT (Gostosa Triste), demonstrando que o triste pode ser algo com o qual precisamos conviver diariamente enquanto escolhemos estar vivas. A tristeza então passa a ser algo que possuímos, não um definidor de quem somos. Não é um lugar para morar, mas sim mais uma das coisas que nos fazem ser.
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