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A Suspensão da Descrença

  • Foto do escritor: Rebel Girl
    Rebel Girl
  • 11 de mar.
  • 6 min de leitura

Um truque pro adulto ver o mundo como criança


Há algum tempo eu tenho percebido uma certa onda nos reviews de livros, mas principalmente em críticas de cinema, sobre como as pessoas não gostaram de uma obra porque algo não foi realista o bastante. Acho muito interessante esse tipo de crítica específica. A pessoa gosta de tudo, personagens, enredo, ritmo, é muitas vezes fã da autora, ou autor, mas o que pega é a falta de realismo de certas situações.

E esse tema toca no livro Alice no País das Maravilhas que escolhi para ler no desafio literário de fevereiro do Ju Entre Estantes que estou fazendo. É a visão de um pai sobre sua filha, sobre seus devaneios de criança em seu jardim.

Alice inicia suas aventuras seguindo um coelho branco e caindo em um buraco profundo em seu jardim, e logo se apresenta o surreal. A queda, na visão dela, é algo que aparenta não ter fim. Quando finalmente chega a uma salinha ela assiste o coelho passando por uma pequena portinha, que ela estabelece estar trancada, e pelo buraquinho da fechadura ela vê um jardim magnífico. Quer passar pela porta, mas logo percebe que é grande demais. Em tamanho mesmo.

Aqui se inicia um cresce e diminui maravilhoso. Ela precisa ficar do tamanho perfeito para passar para o outro lado, tendo apenas um líquido mágico para tomar. Enquanto tenta, ela conhece diversos animais falantes que interagem com ela como adultos, ou a visão que uma criança tem deles. Acha todos rudes, demandando dela comportamentos de boa menina que recita trovas típicas do início do século XX das quais Alice não consegue lembrar enquanto está no País das Maravilhas.

 

“Lá vem o pequeno crocodiloCom sua cauda lustrada

Agitando as águas do Nilo

Em cada escama dourada

 

Ele parece estar sorrindo

Ao exibir suas garras

E os peixes vão sumindo

Na mais feliz das bocarras”

 

Declamar tudo errado a faz ser ainda mais rechaçada. No entanto, ela segue seu caminho, e sempre que cruza com o coelho o segue, tendo assim novas experiencias fantásticas. Ela cresce demais e destrói a casa dele tentando descobrir o que o coelho faz e pra onde vai. Quando finalmente encontra a lagarta (meu segundo personagem preferido), que faz uma das perguntas mais estimulantes que eu já li em um livro “Quem és tu?”, ela finalmente ganha poder sobre seu tamanho, com o cogumelo que a faz diminuir.

 

Quando ela encontra o gato de Cheshire, se sente mais perdida do que nunca.

 

“Poderia, por gentileza, me dizer para onde devo ir?”“Isso depende de aonde quer chegar”, respondeu o Gato.

“Tanto faz...”, disse Alice

“Então, qualquer caminho serve.”

(...)“Naquele lado”, respondeu o Gato, esticando a pata direita, “mora um Chapeleiro. E naquele”, apontou com a pata esquerda, “uma Lebre de Março. Tanto faz visitar um ou outro: os dois são malucos.”

“Mas eu não quero me meter com gente maluca”, declarou Alice.

“Ah, isso é inevitável”, disse o Gato. “Somos todos malucos aqui.”

 

A partir desta interação, Alice continua sua aventura, permitindo se deixar levar por qualquer ocorrência. Ela entra na casa de uma senhora que nunca para de cozinhar, encontra um porquinho sendo ninado como um bebê por uma condessa, enquanto todos espirram descontroladamente por causa do uso exagerado de pimenta na comida. Ela tromba com a lebre de março e seu amigo, Chapeleiro, para descobrir que eles estão há meses tomando chá pois brigaram com o Tempo e Ele os está castigando fazendo toda hora ser seis da tarde, não permitindo assim que eles tenham um momento sequer para lavar as louças entre terminar e começar a tomar chá novamente.

 

Quando finalmente encontra com as cartas de baralho pintando de vermelho flores brancas que foram plantadas sem querer, ela finalmente experimenta o horror de encontrar a Rainha de Copas, que declama a qualquer um que a perturbe minimamente “Corte a cabeça!”. O julgamento das cartas de baralho acusadas de enganarem a rainha com tinta é tão turbulento que traz Alice de volta. Foi tudo um sonho.

 

Foi mesmo?

 

Não há absolutamente nada de factível ou real neste livro. Alice cresce e encolhe ao mordiscar cogumelos e beber poções, conversa com lagartas que fumam narguilé, tem sérias desavenças com um coelho malcriado e toma chá com um chapeleiro. E claro, tem conversas extremamente filosóficas com um gato misterioso (meu personagem favorito de toda literatura que já li). Este livro, além de claro ser uma fábula infantil, é um clássico da literatura para qualquer idade.

 

Alice veio até mim pela primeira vez, e acredito para qualquer um que tenha passado pela fase TV Globinho, em um desenho clássico da Disney, que hoje eu descobri fez o favor de manter este trecho da fala do Gato, tal qual o original (apesar da aguda decepção de descobrir que não existem flores falantes e debochadas no livro). Esta fala não é uma fala (apenas) para crianças. “Então, qualquer caminho serve.” é realidade para todos, e vem completamente sem julgamentos, da boca do gato maliciosamente sorridente. Afinal, ele sabe de algumas verdades. Assim como a loucura do Chapeleiro e seus amigos é extremamente real. Quando se briga com o Tempo (com letra maiúscula mesmo) ficamos parados, repetindo as mesmas ações, pro resto de nossas vidas.

 

Veja: a fala que me emociona é dita por um gato. Em um livro onde cartas de baralho fazem a guarda real de uma rainha cabeçuda e uma lebre bebe chá enquanto seu amigo Chapeleiro briga com o conceito etéreo de Tempo. E você aí buscando realismo?

 

E enquanto eu lia o livro, esta crítica ficava voltando a minha cabeça “não é realista suficiente.”. Esta frase que já foi dita inclusive sobre filmes de ficção científica sobre tecnologias (vejam só) que não existem. Quando ficamos (não eu) tão puristas? Por que precisamos excluir do que acreditamos ser uma “boa narrativa” qualquer traço de fantasia? Se estou falando da nossa geração, nós crescemos assistindo séries que não tinham nenhum embasamento em realidade material. Passamos por um trauma coletivo? O megazord mal-feito no fim do episódio de Power Rangers foi tão repetitivo que nos impede hoje de qualquer tipo de abstração?

 

Meu ponto é: quando lemos, assistimos, vemos uma obra, a busca incessante pelo realismo como padrão de qualidade, vai de completo encontro a possibilidade de se deixar levar pela obra, aproveitá-la, se deixar deslumbrar por ela. E digo mais, a possibilidade de interpretarmos esta obra através do pensamento crítico. Sempre me vem à mente a fala de Viggo Mortensen em Capitão fantástico, quando ele pede a sua filha que descreva seus sentimentos e opiniões com relação ao livro que ela está lendo (no caso ali, Lolita). Ela dá a ele uma não resposta: Não gostei. Ele diz a ela para usar suas palavras, querendo dizer que aquela não é uma resposta aceitável, você pode não gostar, mas tem de haver um porquê.

 

Falta de realismo não é um porquê. É uma não resposta. Foi esta semana que vi uma querida booktoker comentar sobre Biblioteca da Meia Noite. Ela odiou o livro, mas isso não vem ao caso agora. O que me pegou foi que uma das razões que ela deu foi exatamente essa, o não realismo da história. Realmente, porque uma biblioteca “espiritual” onde você pode escolher uma vida alternativa para viver, enquanto contempla seguir pro próximo plano ou voltar a vida é algo que se pode fazer paralelo com o real. Será por isso que filmes de fantasia não estão mais tão em alta, e quando saem, flopam?

 

Eu penso que a vida é muito dura pra gente se encaixotar assim, sabe?  Alice no País das Maravilhas tem 150 páginas. Nelas, ela cai em um buraco profundo e tem as mais improváveis experiências, e esta história veio de seu pai que passava tardes assistindo a Alice da vida real e suas irmãs vivendo suas tardes ao ar livre. Imagina se Lewis Carroll (ou Lutwidge Dodgson, seu verdadeiro nome, que ele não podia usar como escritor pois isso iria prejudicar seu trabalho como professor de matemática) só consumisse ou se envolvesse culturalmente com aquilo que está galgado apenas no que é real. Quantos gêneros literários e cinematográficos não existiriam, quantas obras, quantos movimentos artísticos (Dali, chega aqui!) não teriam existido se esse ultrarealismo fosse a regra.

 

A suspensão da descrença ao se consumir qualquer arte é, em minha opinião, o que permite um adulto ver o mundo como uma criança o faz naturalmente. Alice inicia sua jornada confusa, mas em momento algum nega aquilo que está sendo apresentado pra ela naquele momento, aquilo passa a ser sua nova realidade.

Isso a força a abraçar sua nova situação como uma (pequena) pessoa que passa zero minutos entendendo os por quês de algo, ela apenas aproveita. Acho que deveríamos usar deste aprendizado e fazer o mesmo.

 

Alice no País das Maravilhas me proporcionou as melhores risadas e férias que dei pro meu cérebro em 2025.

 
 
 

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