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Precisamos Falar Sobre Adolescência

  • Foto do escritor: Bianca Rosa
    Bianca Rosa
  • 24 de mar.
  • 9 min de leitura

Atualizado: 24 de mar.

Esta reflexão contém spoilers da série do Netflix


Ser uma mulher nas redes sociais pode ser avassalador. A quantidade de notícias de abuso doméstico, estupro, feminicídio é tanta, que se você não fizer uma curadoria do seu conteúdo, vai enlouquecer. E mesmo assim, ainda recebo sugestões, mesmo que em vídeos curtos, de react de caras intitulados “redpill” falando as maiores atrocidades, e fico imaginando: eu estou vendo uma tiragem de sarro desse homem, mas quem é seu público?

 

Semana passada estreou no Netflix a série Adolescência. Um menino de 13 anos é preso, acusado de matar uma colega de sala a facadas, e os 4 episódios que se seguem tentam destrinchar suas motivações. Automaticamente, fui respondida. Meu questionamento inicial sobre quem seria o público de um homem que trata mulheres na internet como mercadoria, faz apologia ao abuso e, em casos mais extremos de grupos misóginos online, ensina como perpetuar diversas violências contra mulheres e outras minorias.

 

Porém, tratar essa série apenas como um retrato do que é ser um menino nas redes sociais em 2025 é, pra mim, um pouco reducionista.

 

Monstros são criados, não nascem assim. John Douglas, o precursor do perfilamento de assassinos seriais do FBI dos EUA chegou a essa conclusão após trabalhar em centenas de casos, e principalmente, entrevistar dezenas destes assassinos. Os psicanalistas Freud, Melanie Klein e Lacan também, de forma muito mais complexa, demonstram que não há maldade que não seja socialmente construída. Mesmo assim, esta visão do mal encarnado sempre permeou obras audiovisuais e literárias, a visão desses assassinos era algo que beirava o religioso, a ideia de que alguém pode nascer mau. Já perdi a conta de quantos documentários de true crime assisti em que detetives, legistas, advogados, enfim, diversos profissionais adultos envolvidos no caso, se utilizaram desta expressão para falarem do agressor ou assassino em questão. É compreensível, pois quando você se depara com um crime cujas motivações deixam de fazer qualquer sentido, para muitos é muito confortável estabelecer que aquilo existe porque o mal está entre nós. No entanto, esta não me parecia ser a realidade.


"Eu tenho grandes críticas a esse filme, em específico pois perpetua a ideia de que qualquer resultado de uma criação malsucedida é fruto da educação materna, quando, na verdade, esse discurso só é possível porque as figuras paternas destas crianças são completamente ausentes"

Em 2012, foi lançado Precisamos Falar Sobre Kevin, um filme com Tilda Swinton e (o cancelado) Ezra Miller, onde essa premissa de “anjo mal” começa a cair por terra. Ali temos a história de uma mãe que claramente estava passando por uma depressão pós-parto severa, que precisava de intensa ajuda com sua saúde mental para trabalhar e manejar seus desejos, completamente desconexa com seu recém-nascido filho. O pai é o típico homem que acredita que seu papel é ajudar na criação do filho, e é completamente ausente da dinâmica familiar. E tudo isso vai se desenrolando ao longo de anos, enquanto você vê uma linha do tempo paralela, do futuro, onde uma tragédia aconteceu em uma escola de ensino médio, e aos poucos começa a perceber que o que nós estamos assistindo é a criação e ápice de um assassino em massa estadunidense.


Na época, esse filme foi aclamadíssimo por ser o primeiro de seu tipo, uma obra de ficção que se propôs a demonstrar que é dentro do núcleo familiar e a exposição de um adolescente a interações sociais tóxicas que podem ser o motivo para suas ações hediondas. Eu tenho grandes críticas a esse filme, em específico pois perpetua a ideia de que qualquer resultado de uma criação malsucedida é fruto da educação materna, quando, na verdade, esse discurso só é possível porque as figuras paternas destas crianças são completamente ausentes, e dessa parte ninguém queria falar. Mas a obra começa a arranhar alguma superfície de realidade material.


"A pergunta, essa que não quer calar há uma semana, é simples: O que leva um menino de 13 anos a se filiar a estes grupos, e quando negado em seu desejo, matar a colega de sala que o rejeitou?"

Não quero chamar um adolescente de monstro. Em muitos aspectos são crianças que se acreditam adultos. Minha proximidade deles como professora me demonstra que eles realmente acreditam nisso, mas se retraem ao comportamento infantil em situações de desespero, não apenas por não terem todas as ferramentas emocionais para lidar com emoções mais complexas (algo que muitos adultos também não chegam a ter), mas por ainda estarem tão próximos da tenra infância.


Até que um deles mata seus coleguinhas a tiros na escola, ou esfaqueia uma colega de sala até a morte.


Comida, educação, saúde, prover tudo isso para uma criança é o mínimo. Essa ideia também é muito recente, a de que crianças não pedem para nascer, e mantê-las bem nutridas, protegidas, com um teto sobre suas cabeças são, literalmente, as mais básicas das ações, não algo merecedor de agradecimento e/ ou um prêmio. Tirando isso do caminho, então o que significa criar uma criança socialmente apta para conviver com seus pares?


Quando entendemos, logo no início, que o menino é um assassino, meu primeiro pensamento foi que nos episódios seguintes iríamos descobrir que ele vivia em um núcleo familiar violento, talvez abusivo. Essa é a mais clichê “história de origem” de um homem capaz de cometer um feminicídio. No entanto, não é essa a realidade.


Assistimos uma família de classe média do País de Gales, com pais casados que claramente estão fazendo o melhor que podem para criar seus dois filhos. A menina mais velha e o irmão têm um ótimo relacionamento, ele inclusive elogia a inteligência de sua irmã. Os pais parecem amorosos, no entanto, o pai é um tanto ausente, não por escolha, mas pela obrigação de trabalhar mais de 12 horas no próprio negócio para sustentar a família. Então, onde está a violência causadora dos atos atrozes do garoto?


Uma das falas mais potentes dessa minissérie é dita pela psicóloga avaliando o protagonista no episódio 3. Ela pergunta para ele se ele se acha atraente, e quando ele responde que não, ela rebate "você acredita não ser?", explicando finalmente que ali, naquela sessão, o que importa é conversar sobre o que ele acredita, e não a realidade.

Todo o conjunto de crenças do protagonista gira em torno daquilo que ele foi ensinado que um homem deve ser. Seu pai foi vítima de violência doméstica física, perpetuada geracionalmente pelo avô. O pai, no último episódio, demonstra que passou a vida trabalhando em si mesmo para não repetir os mesmos atos com seus filhos, mas ao custo de um certo distanciamento emocional familiar que é peculiar de homens que não foram a fundo (com muita terapia) nos seus próprios traumas para entender que demonstrações de afeto também fazem parte da criação de um ser humano funcional.


Quando ele tenta se conectar com o filho através dos esportes, e vê que ele não tem muito interesse ou aptidão para atividades físicas, ele se sente frustrado e temeroso pelo menino. Afinal, sem uma atividade exclusivamente física, o filho estaria exposto as mazelas violentíssimas do ser homem.


No entanto, enquanto a visão do pai era de desconexão com os interesses do filho (que gostava das artes), e um medo de que ele se transformasse em uma figura que seria atacada pelos seus iguais, a visão do menino ao se descobrir inapto para os esportes é de que ele não era homem suficiente aos olhos do pai. Ele acreditava ser uma decepção para o mundo masculino.


A série apresenta a cultura machista do que um homem, esta figura do imaginário social, deve ou não ser, que dita a vida do protagonista e de milhões de garotos mundo afora que são predados por produtores de conteúdos Incel e Redpill. O menino está em constante conflito entre aquilo que ele acredita que deve ser, e aquilo que ele realmente é: um menino de 13 anos que sofre bullying, frustrado com suas tentativas de atrair o sexo oposto por quem se interessa, que por acreditar ser uma decepção para seu pai acaba se isolando do seu núcleo familiar, buscando em grupos e fóruns machistas online uma resposta para sua batalha interna.


O resultado nós assistimos no episódio 3. Quando pressionado a lidar com verdades difíceis sobre os atos que ele cometeu, ou sobre o que ele acredita serem falhas de seu caráter masculino, o garoto tem rompantes infantis, joga cadeiras e ameaça a psicóloga de forma cruel. Ao mesmo tempo que ele quer ser amado por ela, implora a ela que diga que ele é querido, pois seu entendimento de eu está intrinsecamente ligado ao valor que lhe é atribuído pelo outro.


Não é nenhuma novidade que os homens são criados, e sempre foram, em uma cultura de violência. Só posso falar pelo Brasil, mas acredito que os paralelos possam ser feitos em qualquer cultura ocidental clássica, já que a nossa foi moldada assim. Todos nós já ouvimos proferido a algum menino, ou por um menino, ou por pais, as seguintes expressões:


“Homem não chora.” “Mulherzinha!” “Gay!” “Você é um homem ou um rato?”


Aparentemente, a ideia cultural do masculino não pode se conectar de forma alguma a sua “contraparte” feminina, e o homossexual, que é tratado como um traidor do sexo, também vira um xingamento, afinal, ele poderia ser um homem, e escolheu não ser (um completo absurdo). E dessa ideia de que o feminino (e minorias no geral) são inferiores, a violência que permeia essas relações entre os meninos e homens transborda. A mulher, em específico, passa a não ser vista como um ser humano. Ela é um conjunto de partes, ou uma posse, algo, não alguém. Essa visão masculina torta e extremamente tóxica é a premissa destes movimentos masculinistas já mencionados.


A pergunta, essa que não quer calar há uma semana, é simples: O que leva um menino de 13 anos a se filiar a estes grupos, e quando negado em seu desejo, matar a colega de sala que o rejeitou?


Homens que buscam conteúdo redpill se sentem inferiores a seus pares, realidade que é perpetuada dentro dos próprios grupos por uma organização hierárquica perversa, que denomina tipos masculinos que teriam maior ou menor acesso aos seus desejos. A única superioridade suprema que existiria para um homem é sobre o feminino, que passa a ser estigmatizado e odiado. Aqui começa a se formar o conceito que se tornou cada vez mais comum: amar homens e foder mulheres. Todo amor, consideração e respeito é reservado a outros homens, de forma extremamente homoafetiva, e ao objeto de desejo (mulheres) é destinada apenas a vontade de submissão.


" No entanto, tenho a impressão de que muitas figuras paternas não estão fazendo parte dessa conversa."

Muito se falou sobre as redes sociais, que a facilidade com que este conteúdo tóxico chega aos meninos é rápida, e apela para o sentimento de raiva e frustração que está conectado a repressão de sentimentos mais complexos, que são negados aos meninos dentro desta cultura masculinista sobre pena das represálias que mencionei anteriormente. Violência, discurso de ódio, tudo que choca engaja mais, e a rede social cumpre seu papel autoimposto de te manter ali pela maior quantidade de tempo possível. Mas eu acho que a visão de acreditar que as redes sociais são as culpadas pelo surgimento desses “meninos bomba” é extremamente cômoda e terceiriza a responsabilidade.


A este menino foi prometido o mundo. Não apenas nos grupos tóxicos machistas que perpetuam essa ideia, mas a própria sociedade que estamos inseridos dá aos meninos a ideia de que o mundo lhes pertence. Porém, ao serem confrontados com a frustração dos inúmeros nãos que uma pessoa leva ao longo da vida, esses meninos quebrados emocionalmente partem para a única saída que eles conhecem: a da violência.


Tenho uma amiga que hoje é mãe solo e postou uma vez em seus stories um texto intitulado “Como não Criar um Babaca”. Apesar de não ser mãe, li na íntegra, pois como uma sociedade vê a criação de suas crianças dita a construção de uma sociedade minimamente decente (ou não). E percebi o quanto é recente esta relação entre a educação familiar e social infantil, e o resultado dela nos homens adultos que vemos ao nosso redor. Foi um baque ver isso explícito de forma tão brutal nesta série. O fato de ser um menino de 13 anos quem comete a violência é crucial e colocou muita gente pra pensar na própria forma como está criando seus filhos.  No entanto, tenho a impressão de que muitas figuras paternas não estão fazendo parte dessa conversa.

 

Existe muita expectativa da figura paterna, por mais bem intencionada que ela seja. O homem que não trata seus próprios traumas está fadado a perpetuar algum tipo de masculinismo tóxico. O pai da série, claramente tenta fazer o seu melhor, mas ao descobrir que não vai conseguir se relacionar com seu filho, pois acredita não “falar sua língua”, se distancia ao invés de se colocar como aprendiz dos desejos e interesses do seu filho. Assim, estabelece um abismo entre eles, intransponível, já que não é papel da criança fazer a ponte emocional e psicológica com seus pais. Em paralelo a distância, a ausência parental consolida os medos e frustrações deste menino, que já acredita não ser amado pela figura de maior importância social em sua vida. Pronto, receita para algum desastre, nem que seja a incapacidade dessa criança de se relacionar socialmente de forma efetiva com outros, o que pode parecer pequeno, mas é a base de ser um humano.

 
 
 

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